Sobre Mestres e Gurus

Ultimamente tenho ouvido com mais frequência queridos alunos me chamando de mestra, mestrinha ou até guru. Me crispo toda e com humor aviso “esse papo de mestra só depois dos 70 anos”. Talvez isso tenha se tornado mais frequente pois estive mais uma vez morando na Índia e há uma crença de que quem vai à Índia se torna imbuído de conhecimento espiritual instantaneamente. Obviamente qualquer um que pare para refletir durante dois segundos, chega a conclusão de que isso não faz sentido algum – é como se todo mundo que fosse ao Brasil saísse de lá craque em futebol ou faixa preta de jiu-jitsu – mas no background mental essa lenda existe e influencia nosso olhar. Estou puxando esse papo aqui, pois fico realmente preocupada: nosso nível de exigência está tão baixo assim? Não é humildade minha, sei que sou esforçada e tenho me dedicado bastante e por isso tenho algo a compartilhar, mas isso não faz de ninguém mestre ou guru. Não dentro das tradições ortodoxas hindus, ou Darshanas.

O uso das denominações de mestre ou guru é muito comum na Índia, usado para professores de quaisquer disciplinas: artes, matemática, gramática. Tive um professor de Hindi que fazia questão que o tratássemos por guruji. Em várias partes do mundo, tratamos nossos professores escolares e universitários por mestres. E há ainda os mestres por títulos acadêmicos. Okay. Mas no caso do Yoga ou outras disciplinas que tratam do caminho de autodescoberta, precisamos ser mais cautelosos e MUITO mais exigentes com o uso dessas denominações.

Professor já é um título bom o suficiente, desde que se estabeleça uma relação de respeito, troca e sinceridade entre professor e aluno, em via de mão dupla, sempre! E mesmo assim já estamos sendo promovidos a um nível muito elevado quando somos chamados de professores de yoga; espia aqui as qualificações e atribuições trazidas por Nathamuni, no Yoga Rahasya:

“Aquele que é instruído, que reflete e que tem autocontrole, depois de examinar e analisar o tempo, o lugar, a idade, a ocupação e a força do aluno, adapta muito adequadamente o ensino de yoga (às necessidades daquele aluno).”

Swami Vivekananda também nos estimula a observar constantemente nosso compromisso com a relação de ensino-aprendizagem com uma afirmação eloquente sobre quem é capaz de estar na posição de professor:

“O professor deve lançar toda a sua força na direção da tendência do aprendiz. Sem verdadeira simpatia, nunca podemos ensinar bem. Não tente incomodar a fé de qualquer homem. Se puder, dê-lhe algo melhor, mas não destrua o que ele tem. O verdadeiro professor é aquele que pode converter-se, por assim dizer, em mil pessoas, em um instante. O verdadeiro professor é aquele que pode imediatamente atingir o nível do aluno e transferir sua alma para a alma do aluno e ver e entender através de sua mente. Tal professor realmente pode ensinar e nenhum outro.”

Bom, voltando ao papo de mestre e guru. Não sei o quanto vocês têm acompanhado as notícias dos últimos… hmmm… séculos, mas é uma quantidade enorme de casos de denúncias de falsos gurus, de abusadores, de aproveitadores, etc, etc. Mais recentemente, passaram a existir diversas organizações espalhadas pelo mundo para denunciar casos de abusos ligados à comunidades e instituições que se propunham, em teoria, a servirem de instrumento para o autoconhecimento, desenvolvimento espiritual ou atendimento terapêutico. Em geral, o perfil dos falsos mestres se repete, mas não vou gastar linhas aqui sobre a descrição desse perfil pois tem muitos artigos rolando na web pra quem quiser se informar. Vou falar do perfil do mestre real, e o porquê disso NÃO ser o meu caso, e nem o caso da grandissíssima maioria dos professores de yoga e terapeutas de qualquer coisa que vamos encontrar ao longo de toda a nossa vida (Exagerei, né? Mas não é exagero).

O guru ou mestre, dentro das tradições do Sanatana Dharma (e o yoga está incluído aqui), é aquele que percorreu o caminho, purificou seus instrumentos e teve a experiência direta da sua natureza espiritual. Neste percurso, ele foi orientado por alguém que já havia passado pelo mesmo processo, e este foi orientado por alguém. A esse processo de aprendizado passado de gerações de mestres a gerações de discípulos, chamamos de guru-shishya parampara. Há também casos raríssimos de pessoas que fazem esse percurso sem o acompanhamento de um mestre. Acontece que nesse processo de investigação interna, existem diversas pegadinhas e confusões. Pensa só, estamos investigando camadas profundas de nossos próprios padrões mentais, memórias e condicionamentos – mente investigando mente – daí a necessidade de uma orientação externa altamente capacitada, pois sozinho tem muito mais chance de dar ruim do que de dar bom. Imagina então alguém que achou que tinha sido bem-sucedido nesse processo, mas em realidade entendeu tudo errado, e saiu por aí guiando pessoas. Resultado, diz a Katha Upanishad: “Tolos habitando nas trevas, sábios em sua própria vaidade, e cheios de conhecimento vão, andam de um lado para o outro cambaleando para lá e para cá, como cegos guiados por cegos.”

Mas as qualificações necessárias para um guru não param por aí: sua mente e seu coração devem ser absolutamente puros. Segundo as escrituras, apenas uma mente e um coração puros têm condições de ter a experiência de Deus ou de sua própria natureza divina, como preferir. E essa pureza deve ser perceptível. Não é porque alguém fala que é puro, ou fala bonito sobre a pureza, que eu vou acreditar, isso deve estar evidente em todas as palavras e ações dessa pessoa, principalmente nas ações.

Outra condição citada nas escrituras é o inegoísmo. Um guru não possui agenda pessoal, ou seja, não deve ensinar por qualquer motivo egoísta ou de interesse pessoal, seja dinheiro, fama, reconhecimento, nome. Mas… Porquê? Pois o guru não é apenas um professor ou instrutor de uma disciplina, além disso ele deve transmitir uma força espiritual que lhe foi transmitida e “o único meio através do qual a força espiritual pode ser transmitida é o amor. Qualquer motivo egoísta, como o desejo de ganho ou de nome, destruirá imediatamente esse meio de transporte”, nos explica Swami Vivekananda.

E onde é que eu acho um guru desses? A pergunta é boa, mas não há um endereço ou localização geográfica que se possa indicar. Novamente as escrituras nos dão a dica: quando o interesse pelo conhecimento do Ser for tão urgente quanto a necessidade de respirar quando se está afogando, tudo será devidamente arranjado. Enquanto isso, os professores comuns, como eu e meus colegas, podemos dar uma mãozinha no processo de redução dos obstáculos que impedem a clareza mental.

Por Ana Poubel

Sintra, Portugal, 5 de Junho de 2019

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos

A Presença e as Ações de Prāṇa Śakti

De maneira geral, o objetivo do Yoga é provocar uma mudança na consciência e, consequentemente, no impacto sobre a atitude e as funções do indivíduo. Essa transformação pode ser vista como a união de dois opostos, como Prāṇa e Apāna, ou a separação de dois aspectos aparentemente inseparáveis, como Puruṣa e Prakṛti. Em ambos os casos, um tempo e um processo estão envolvidos. Essa mudança pode começar no corpo físico, nos processos energéticos, na atitude mental ou nas respostas emocionais.

Leia mais »

Mudar a mente para meditar

Já perdi a conta de quantas vezes meu professor repetiu uma enfática afirmação de Tirumalai Krishnamacharya, que diz: “é preciso mudar a mente para meditar,

Leia mais »

Leave a Reply