Há algo aqui que quase todos nós temos em comum: todos já ouvimos falar sobre Yoga ou praticamos algum tipo de Yoga. Com maior ou menor dedicação e intensidade, durante um período de tempo maior ou menor, todos nós experimentamos que a prática do Yoga produz efeitos concretos. Certamente, o tipo de efeito dependerá do tipo de Yoga que praticamos.
Quando falamos dos efeitos do Yoga na personalidade, temos que entender primeiro o que, para nós, significa a palavra personalidade. Geralmente, entende-se por personalidade “a forma de ser” de uma pessoa, as qualidades e características que a diferenciam dos outros. Quando alguém possui características próprias que, se comparadas às de outras pessoas, são mais fortes e, de alguma forma, a destacam das demais, dizemos que ela “tem personalidade”. Esta é uma acepção popular. Como vocês bem sabem, esta acepção popular baseia-se em um conceito generalizado do ser humano, um conceito que considera o homem como um corpo, uma mente, e algo mais, mas que, quando tratamos de definir, essa definição começa se a tornar difícil.
Vamos tratar de nos aprofundar um pouco e olhar o ser humano em sua totalidade. Antes de mais nada, vamos tentar entender o que é uma pessoa, do que ela se constitui, e, então, tratar de compreender o que é a personalidade. Do ponto de vista da filosofia Vedanta, o “ser humano” constitui-se do “Ser”, que é algo imaterial, e do “humano”, que é seu aspecto material.
O Atman é o que existe de mais importante em nós, e a última etapa do Yoga nos ajuda a descobri-lo. Mais adiante, trataremos do significado do Ser, ou Atman, na terminologia Vedanta.
Vamos começar com o que temos mais à mão: nosso aspecto material. Nos humanos, a matéria possui diferentes graus de densidade, diferentes graus de sutilidade. A matéria é a mesma, apenas está estruturada de formas diferentes. Traçaremos um paralelo muito simples com a água. Como vocês sabem, a água pode se apresentar em três estados diferentes: líquido, sólido e gasoso. A substância é a mesma: H2O, mas a “organização” dessas moléculas de H2O varia segundo o estado em que se encontra essa substância. De forma semelhante, no homem, o que é matéria se apresenta em diferentes graus de “organização” interna. Diferentemente desta analogia com a água, não vamos falar aqui somente de moléculas, mas também de energia. Quando se trata dos elementos que constituem o homem, sem mencionar o espírito ou Ser, o que encontramos é matéria e energia que se apresentam em diferentes níveis de organização molecular e energética, algumas vezes mais densas e outras mais sutis.
A Vedanta reconhece cinco estados principais da matéria e da energia que estruturam o homem. A palavra em sânscrito que os define é kosha, que significa invólucro ou envoltura. No homem, existem cinco koshas que envolvem ou recobrem seu Ser. A primeira e a mais fácil de identificar é o corpo físico, constituído de ossos, sangue, carne, etc. Nós o percebemos simplesmente ao tocá-lo. A segunda é a energia vital que envolve todo o organismo. Alguns de vocês conhecem a palavra que define esta energia vital: prana [o Swami deu aqui um exercício de reconhecimento]. A terceira é a mente [outro exercício de reconhecimento]. A quarta é o intelecto e abrange um nível de compreensão mental muito mais elevado, no qual entra em funcionamento a capacidade que a mente tem de discernir, de discriminar [mais um exercício de reconhecimento]. Finalmente, temos a mais sutil de todas as envolturas, e que se caracteriza pela manifestação de um estado de bem-aventurança, o limiar do que no budismo se denomina nirvana e, no Yoga-Vedanta, samadhi.
Então, nos seres humanos, a combinação entre matéria e energia estrutura-se nos cinco diferentes níveis que acabamos de descrever. A personalidade resulta do tipo de desenvolvimento alcançado pelo indivíduo nesses esses cinco diferentes níveis. Por isso, quando falamos dos efeitos do Yoga na personalidade, entendemos os resultados que a prática do Yoga, como um sistema integrado, constituído de diferentes passos, produz em cada um desses cinco níveis. Isto é algo muito importante de se identificar: o que buscamos é obter uma personalidade “integrada”, por isso falamos de um sistema de Yoga integrado, que atua em toda a nossa personalidade e não somente em uma parte dela. Se trabalharmos apenas um aspecto de nossa personalidade, ou seja, um ou dois desses koshas ou invólucros, desenvolveremos uma personalidade fragmentada, dividida, compartimentada; uma característica assustadora no mundo atual.
O que queremos dizer com isso? Podemos praticar algum tipo de Yoga, ou alguns passos do Yoga, que somente promovam a saúde física ou nos ajudem a regular o prana. Mas na vida, quando nos deparamos com sérias dificuldades, e ninguém pode escapar disso, talvez não sejamos capazes de solucionar o problema apresentado, isso porque não dedicamos algum tempo de nossa vida para desenvolver a capacidade de discernir entre o que realmente tem valor e o que não serve para nada. Com isso, as questões essenciais da vida são deixadas totalmente de lado.
Ou pode acontecer o contrário: praticamos algum tipo de Yoga, ou alguns passos do Yoga, através do qual conseguimos desenvolver nossa capacidade de discernimento e alcançamos um nível muito elevado no qual compreendemos muito claramente o que é bom e o que é mau em todos os campos da vida. Mas na hora de aplicar este conhecimento, no momento de “colocar mãos à obra”, como se costuma dizer, não temos nem o vigor, nem a inteireza, necessários para fazer o que sabemos que é bom; assim, acabamos levando uma vida contraditória, sempre em conflito entre o que pensamos e o que fazemos, isso porque não nos dedicamos ao desenvolvimento dos outros níveis de nossa personalidade. Esse é um exemplo de personalidade fragmentada. Para alguém assim, é muito difícil, quase impossível, alcançar a união ou a transcendência com sua verdadeira natureza, o Ser ou Atman do qual falamos no começo.
Nossa meta, então, é desenvolver uma personalidade “integrada” por meio de um sistema de Yoga integrado. Como?
Na Criação, quando falamos de algo “integrado”, algo “coeso”, deduzimos que existe alguma coisa que atua como fator aglutinador, um elemento que consegue juntar e manter todas as partes unidas. Na receita de um bolo, esse fator aglutinador são os ovos (embora haja vegetarianos que consigam isso com outros elementos). Em uma parede, o elemento responsável pela união dos tijolos é o cimento; na Terra, o que atrai todos os objetos e os impedem de permanecer à deriva no espaço, é um centro de gravidade situado no interior do planeta.
Quando dizemos personalidade integrada, se deduz que deve haver algo central em nós que faz com que a personalidade não se fragmente. Todos vocês, durante um mesmo dia são pais, mães, maridos, esposas, filhos, filhas, amigas, profissionais, donas de casa, estudantes de Yoga, etc. Prestem atenção como uma mesma ação, por exemplo, o ato de saudar alguém, implica atitudes completamente diferentes, dependendo do papel que se desempenha no momento. Vocês não saúdam seus filhos da mesma maneira que saúdam seu marido, ou uma amiga. A personalidade como um todo apresenta uma disposição diferente; desde a atitude do corpo, a energia interna, o intelecto, e até o tipo de felicidade que sentem ao realizar a mesma ação que, nesse caso, é a de saudar alguém. Isto é algo que todos experimentam diariamente. O que é que, em todas as ocasiões, faz com que vocês repitam “sou a mesma pessoa”, embora diferente?
Vejamos outro exemplo: há pouco, quando tratamos de perceber os cinco diferentes koshas, (as diferentes envolturas que constituem o aspecto material do ser humano), havia alguém, ou algo inerente que identificava cada kosha: “Agora estou tocando meu corpo, agora estou sentindo meu prana, agora estou prestando atenção em minha mente; sim, agora estou discernindo, sinto-me feliz”. Quem é que percebe a existência de todas estas diferentes envolturas? A mente? Não exatamente. Talvez seja por meio da mente; afinal estamos conscientes de que temos mente, mas quem é que está consciente disso? Quem atua por detrás, ou em um plano mais profundo, e que percebe tudo? Esse é o nosso centro, é o que mantém nossa personalidade integrada. Identificá-lo é o primeiro grande passo do Yoga.
O segundo passo é tentar encontrar-se nesse “centro” a qualquer momento e sempre que se desejar. Em seguida, o ideal é poder permanecer sempre neste centro. Do ponto de vista da Vedanta, a prática do Yoga é essencial para se conseguir isto.
A palavra Yoga deriva da raiz sânscrita yuj, que significa “unir”. Então, Yoga significa “união”. União de quê? Primeiro, a união de todas as partes de nossa personalidade para nos identificar com nosso verdadeiro Ser, o Atman, o que em nós não é matéria. Em seguida, ocorre a união desse Ser individual com o Ser Universal ou Ser Supremo. Ai, então, alcançamos a unidade com o Todo.
Direi algumas palavras a respeito da técnica do Yoga, mas sem entrar em detalhes, já que tudo está muito bem explicado no fantástico livro de Swami Vivekananda, chamado Raja Yoga, e em vários versículos do Srimad Bhagavad Gita, especialmente no capítulo seis. Aqui vou me referir apenas a como cada um dos passos do Yoga atua sobre algum aspecto de nossa personalidade; e como, praticando, todos nós conseguimos desenvolver uma personalidade saudável e integrada.
Os primeiros passos do Yoga são chamados yama e niyama, e envolvem certas práticas de conduta sem as quais o desenvolvimento dos outros passos se torna prejudicial. Sim, isso é algo que tem que estar muito presente. Se não houver uma preparação adequada nestes primeiros passos do Yoga, a prática dos passos seguintes será prejudicial e, em certos casos, chega a se tornar fatal. Até mesmo a prática do Hatha Yoga, que está relacionada com o terceiro passo do Yoga denominado ásana, pode danificar o corpo se os dois primeiros passos não forem praticados diariamente. Ninguém deve se assustar com isso, esse é somente um alerta. Vamos esclarecer isso para que ninguém pense que a Yoga é algo terrível. O primeiro passo, yama, nos convida a não prejudicar nenhum ser vivo, a ser verdadeiros conosco mesmos e com os outros, a não nos apropriarmos dos bens alheios, não levar uma vida promíscua e não depender da generosidade e dos favores de ninguém. O segundo passo, niyama, nos ajuda a manter uma conduta equilibrada, já que nos propõe levar uma vida simples, dedicada ao estudo e aquisição de princípios elevados (que é o que estamos fazendo agora), manter um constante bom humor, ser asseados interna e externamente e, de alguma maneira, a nos relacionarmos com Deus. Definitivamente, estes dois passos iniciais nos permitem regular nosso sistema psicofísico para que ele esteja apto para a prática dos passos seguintes do Yoga.
Como já dissemos, o ásana é o passo seguinte. Disciplinar e controlar o corpo, na medida do possível é muito importante, porque ao trabalhar o que é visível e imediato em nós mesmos, conseguiremos alcançar os níveis mais sutis. Como muitos de vocês já experimentaram, o resultado dessas práticas é uma melhora geral da saúde. As diferentes posturas ajudam a energia a circular de forma mais harmônica, e todos os sistemas internos se organizam adequadamente para cumprir sua função: o sistema digestivo para digerir bem, o endócrino para secretar corretamente os hormônios, etc.
O próximo passo é a regulação das forças vitais por meio dos exercícios de pranayama. Estes exercícios devem ser praticados com muito cuidado e com instrução apropriada. De outra maneira, podem prejudicar a saúde e a irrigação sanguínea do cérebro. O resultado para a personalidade é um equilíbrio emocional maior, algo tão necessário para nós latinos, sempre temperamentais, apaixonados, e sentimentais por natureza.
Os dois passos seguintes atuam sobre as envolturas ou koshas que condicionam a mente. A tendência dos nossos cinco sentidos é dirigir-se sempre para os objetos externos; ou seja, a tendência do sentido da visão, por meio dos órgãos correspondentes que são os olhos, é dirigir-se para o que tem forma; a tendência da audição, por meio dos ouvidos, é ser atraída para os sons, etc. Controlar essas tendências dos sentidos de acordo com a nossa vontade e atraí-los para nosso interior, em vez de se dirigirem para o exterior, é o que se chama pratyahara.
Dessa forma, assim que os sentidos puderem ser controlados, tenta-se realizar o passo seguinte denominado dhárana, que é a concentração da mente em um ponto interior, seja no coração ou no espaço entre as sobrancelhas (já que estamos falando nesse assunto, a primeira concentração é mais fácil e menos perigosa do que a segunda).
Esta etapa do Yoga atua sobre a envoltura mais sutil da mente, a faculdade do intelecto.
Por meio dos passos mencionados anteriormente, ou seja, pratyahara e dhárana, a prática do Yoga gera uma grande força mental em nossa personalidade. Essa força mental exerce um importante papel na hora de enfrentar muitas situações, positivas ou negativas, da vida cotidiana sem que a personalidade seja afetada.
A seguir, vem a prática de dhyana ou meditação, que atua sobre a envoltura relacionada com o estado de bem-aventurança no homem. A verdadeira meditação produz um estado de intensa bem-aventurança em qualquer ser humano, e não uma simples alegria. Há milhares de livros sobre meditação, mas aqui só diremos que a meditação é a vibração de uma só onda mental de forma constante, sem que esta se altere por influência de outras ondas mentais. É o fluxo constante de um só pensamento, ideia ou conceito, sem nenhuma interrupção. Quando alguém medita realmente, consegue alcançar uma percepção completamente diferente das coisas, das pessoas e das situações. Alcança uma compreensão maior sobre qualquer tema e uma ideia clara a respeito de que direção tomar em cada atividade da vida. Como já dissemos antes, este é o portal que nos conecta com nosso Ser, o Atman.
Finalmente, quando essa meditação se torna estável e a mente se une completamente ao seu objeto de meditação, quando a mente e seu objeto de meditação se tornam um, é alcançado o último passo, denominado samadhi, que nos conecta diretamente com nosso Ser ou Atman. Somente quando experimentamos a existência do Atman em nós é que encontramos nosso centro de gravidade espiritual, aquele que mantém a personalidade totalmente integrada.
Se durante doze segundos a mente puder se manter concentrada em um único objeto, teremos um dhárana. Doze dháranas constituem um dhyana e doze dhyanas constituem um samadhi. Ao alcançar este último passo, passamos a perceber nossa existência em Deus e a presença de Deus em tudo.
Vamos resumir:
- O ser humano é constituído de algo material e de algo não material. Sua essência é o Ser, o Atman, o que não é material. Nesse plano relativo, porém, e para fins práticos, nós o consideramos como uma combinação de Ser e não-Ser.
- No homem, o que é matéria apresenta-se em cinco diferentes níveis de densidade, ou cinco koshas: Corpo, energia vital, mente, intelecto e bem- aventurança. A personalidade de um indivíduo é determinada pelas características manifestadas nesses cinco níveis.
- Os diferentes passos do Yoga nos permitem atuar em cada um destes planos a fim de potencializá-los e, harmonizá-los individualmente e, em seguida, integra-los.
- Existe algo que integra a personalidade; devemos buscá-lo e tentar nos conectar com ele a fim de não viver uma vida fragmentada.
- Praticamos Yoga, sobretudo, para integrar nossa personalidade e, finalmente, para alcançar a transcendência espiritual.
Palestra proferida por Swami Madhurananda (monge da Ordem Ramakrishna)
Embu-Guaçu, Brasil, 23/09/2007