Esta é uma discussão sobre Kali e sua relevância em nossas vidas e também o significado do dia de Phalaharini Kali Puja, que é observado em um dia de lua nova e ganhou popularidade porque foi neste dia que Sri Ramakrishna ofereceu todos os méritos de sua prática espiritual aos pés de sua consorte, Sri Sarada Devi. A palavra phalaharini significa “a mulher, que tira os frutos de nossas ações”. Phala significa fruto, os frutos das ações. Sempre que fazemos alguma coisa, cria-se um fruto na forma de tendências na mente e esse fruto nos leva a fazer outra ação. Suponha que alguém ouve algo bom, isso deixa uma boa tendência na mente e o faz ouvir mais coisas boas. Este ciclo faz você voltar e voltar a este mundo, porque é preciso esgotar as tendências mentais. Phalaharini remove todas essas tendências tirando os frutos das ações de uma pessoa. Harini significa a mulher que tira. Continuamos obtendo os resultados das nossas ações por causa do pensamento: “Eu sou o fazedor e eu sou o desfrutador”. O objetivo da vida espiritual é remover esse pensamento. Este processo é apressado por Phalaharini Kali.
Todos nós estamos aqui neste mundo porque cada uma de nossas ações produz uma impressão em nossas mentes e essa impressão nos impele a fazer mais ações. Se eu fizer uma boa ação, isso deixa uma boa impressão em minha mente, que é chamada de samskara – também é chamada de karma ou karma-phala – e isso faria com que eu fizesse outra boa ação, e isso continua até que eu entenda que eu não sou o fazedor. Enquanto eu tiver o senso de ser o fazedor, este samskara ou karma-phala será gerado. Kali é chamada – particularmente no contexto de Phalaharini Kali puja – phalaharini, porque ela tem o poder de destruir todos os karmas ou samskaras de nossas vidas. Ela tem o poder de liberar você e eu do ciclo de repetidos nascimentos e mortes, repetidas idas e vindas. Portanto, é bastante significativo que Sri Ramakrishna tenha rendido todos os frutos de suas austeridades espirituais no dia do Phalaharini Kali puja, aos pés de sua esposa.
Isso não é apenas significativo, mas é sem precedentes e sem paralelo na história espiritual. Nunca uma personalidade espiritual, um profeta ou uma encarnação divina deram tanta importância à sua esposa, a ponto de entregar todas as austeridades espirituais a ela. Esta não era uma esposa com quem ele tinha algum tipo de conexão sobrenatural ou milagrosa, mas ela era uma esposa muito em carne e osso, com quem ele era casado; e a essa pessoa ele entregou todas as suas austeridades espirituais.
Na vida de Sri Ramakrishna, vemos uma forte conexão com a Deusa Kali. Mais tarde, vemos a mesma conexão na vida de Swami Vivekananda, e por muitas razões foi muito importante para Sri Ramakrishna que Swamiji aceitasse a divindade de Kali e é por isso que quando Sri Ramakrishna viu que Swamiji aceitou a divindade de Kali, ele ficou extremamente feliz: ele começou a bater palmas e a cantar canções.
A forma de Kali
Qual é a forma geral de Kali? Kali é uma deusa cuja aparência é completamente negra. Há músicas que dizem que ela é mais negra que a própria cor negra. Ela é o breu. Em sânscrito, a palavra para divindade, deva ou devi vem da raiz div, que significa luz. E essa é a razão pela qual a maioria dos deuses e deusas são muito luminosos. Mas aqui está uma deusa que é muito escura. Um bom granito ou mármore para se fazer uma imagem de Kali tem que ser preto. A forma das mulheres ou a forma de uma divindade, particularmente uma divindade feminina, é supostamente convencionada a possuir o que é chamado de graça feminina. Se você tomar as formas de Lakshmi ou Sarasvati, suas formas são muito graciosas, cheias de feminilidade e graça. E uma coisa que é um aspecto muito importante da graça feminina, convencionalmente, é a roupa. É por isso que vemos que, no passado, as rainhas davam – e até hoje, rainhas sociais dão – muita importância ao seu vestuário. No entanto, Kali não usa nada. Ela está absolutamente nua. Ela está completamente nua. Primeiro, ela ataca o senso convencional de beleza sendo totalmente negra e, segundo, ela ataca a idéia convencional de graça ou feminilidade ao ficar completamente nua.
De acordo com as normas convencionais da graça feminina, espera-se que uma mulher fale suavemente. A sociedade associa uma mulher com um som suave, um gesto suave e um andar gracioso. Mas em Kali há uma mulher que tem a língua pra fora da boca. Quando você faz esse tipo de coisa? Quando você quer insultar alguém ou quando você está com um humor frívolo, e você está tentando tirar sarro de alguém. Ambas as ações não são consideradas boas na sociedade. Há numerosas interpretações de por que Kali estende a língua, mas a imagem de uma forma divina feminina, que é nua e negra, e com a língua pra fora, é bastante chocante.
Mas o choque não pára por aqui. Ela usa uma guirlanda de cabeças. Outra coisa que é comumente associada a uma mulher são os ornamentos. Nós vimos que Sri Sarada Devi deveria receber alguns ornamentos na época de seu casamento, mas depois do casamento esses ornamentos foram removidos. E Sri Ramakrishna comentou, de maneira engraçada, que agora a família da noiva não podia fazer nada; o casamento já havia terminado. Nos tempos atuais, esse incidente provavelmente não teria passado de forma tão simples, mas essa foi uma observação feita naqueles tempos passados. No entanto, mais tarde, Sri Ramakrishna recebeu alguns ornamentos feitos para Sri Sarada Devi porque ele disse que as mulheres adoram ornamentos. Ainda hoje as mulheres adoram ornamentos, talvez a forma dos ornamentos tenha mudado. As mulheres de hoje podem não ter o mesmo amor pelos enfeites de ouro, mas há novos tipos de enfeites, como extensões de unhas ou sobreposições de unhas. No entanto, as mulheres sempre adoram ornamentos. Mesmo os homens adoram acessórios corporais, só que eles não são convencionalmente vistos como ornamentos pela sociedade.
Esta é a idéia convencional de uma forma feminina e é por isso que encontramos as deusas Lakshmi ou Sarasvati enfeitadas com ornamentos como piercings de nariz e brincos. No templo da Deusa virgem em Kanyakumari, em Tamil Nadu, mesmo a uma certa distância da divindade principal você verá uma lâmpada brilhando no nariz da imagem da Deusa. Isso não é uma lâmpada, mas um piercing de nariz com uma gema tão poderosa que emite uma luz tão forte como se fosse uma grande lâmpada. A lenda diz que, no passado, quando o templo não era coberto e a imagem estava à céu aberto, os navios costumavam navegar vendo a luz do piercing da Deusa, que funcionava como um farol.
Então, em geral a forma feminina está associada a ornamentos. E aqui temos a forma de Kali, que está usando uma guirlanda de cabeças como enfeite; não apenas uma guirlanda de cabeças, mas também uma guirlanda de dedos. O que quer que ela esteja usando como enfeite, não pode ser considerado como tal nem mesmo pelo mais louco alcance da imaginação. Isso é um contraste gritante com o nosso senso de decoro e estética. A maioria das pessoas, que são baseadas em idéias tradicionais de beleza feminina e graça – como a noção grega ou européia de uma deusa, ou alguém vindo de partes do mundo que não estão familiarizados com a imagem de Kali – fica muito chocado quando vê pela primeira vez a forma de Kali. Eles ficam totalmente chocados porque nunca imaginaram uma divindade como esta: uma mulher negra nua, projetando sua língua e tendo uma guirlanda de crânios. Claro, ainda não pára por aí. Para completar, a cereja no topo do bolo é que ela está de pé sobre o peito de Shiva. Aqui você tem uma forma feminina que está de pé sobre uma forma masculina. É o maior choque possível para todas as ideias convencionais de beleza e feminilidade. Todos esses aspectos de Kali têm uma grande ramificação e significância. Geralmente, não vemos a imagem de Kali sob essa ótica. A maioria de nós simplesmente fica na frente da imagem dela e diz: “Por favor, proteja-me”. Nós apenas rezamos com medo.
A iconografia e simbologia da imagem de Kali tem uma grande importância. O posicionamento da forma feminina sobre a forma masculina é de particular importância. No caso do Senhor Narasimha, vemos que a Deusa Lakshmi está sentada em seu colo. No caso do Senhor Vishnu, vemos que a Deusa Lakshmi está sentada a seus pés. Nós não vemos uma forma feminina diferente de Kali em pé em cima de uma divindade masculina. E quem é essa divindade masculina? Shiva, um mendicante. Ele é um sadhu. Shiva é a divindade de todos os sannyasins (renunciantes). Seu casamento também é a mais alta demonstração de renúncia no mundo. Ele não se preocupa por onde fica, ele não se preocupa com o que veste, ele não se preocupa com o que come, e ele está sempre feliz. É por isso que ele é o Senhor dos sannyasins. No Sanatana Dharma, tudo é deificado. Sanatana Dharma não tem nenhuma dicotomia de divindade. O que é a dicotomia da divindade ou dualidade da divindade? É a crença de que há algo divino e que há algo que não é divino. Que existe um Deus e que existe um diabo. O Sanatana Dharma não acredita nisso. Todas as tradições do Sanatana Dharma ensinam que tudo o que vemos é a manifestação do único princípio divino e, portanto, não há problema em adorar Kali, porque o Sanatana Dharma deificou a destruição e a morte. Em algumas regiões da Índia, o culto a Kali é proibido para as pessoas de família. No entanto, em alguns outros lugares da Índia, Kali é adorada diariamente em várias casas. É o mesmo caso com a adoração de Chinnamasta. Kali é a deificação do terrível. Até mesmo a palavra “Kali” poderia denotar o terrível. Kali é o terrível ou terror encarnado.
Não estava lá nos primeiros tempos védicos. Ela veio depois dos primeiros tempos védicos e esta forma, por tudo que sabemos, não é tão pronunciadamente encontrada nos Vedas. Apesar de duas, ou talvez um pouco mais, referências a Kali poderem ser encontradas nos Vedas, nenhuma delas é dos primeiros tempos védicos e até mesmo essas referências não são muito claras. No entanto, sabemos que a Adoração da Mãe ou a adoração ao princípio divino feminino era bastante proeminente nos Vedas. É encontrada ao longo os Vedas. Mas a forma de Kali não é tão distinta nos Vedas. A forma de Kali originou-se na Índia e se espalhou por diferentes partes do mundo. Essa forma também foi adaptada ao budismo. Kali entrou no budismo e voltou de uma forma diferente para a Índia, como uma deusa budista Vajra Devi.
Kali é uma das principais formas ou deusas associadas ao Tantra. Há muita confusão sobre o Tantra. Hoje, o Tantra é considerado uma liberdade para se dedicar ao sensual, mas o Tantra é tudo menos isso. O Tantra é a canalização das fraquezas humanas , direcionando-as para Deus. Sri Ramakrishna costumava dizer que, se você quiser chorar, chore por Deus; se você deseja desejar alguma coisa, deseje a Deus; e se você quer amar, ame a Deus. Canalizar ou direcionar seus impulsos e instintos para Deus. Isso é Tantra. Tantra tem várias correntes, mas o objetivo de todas elas é a canalização de todos os desejos para Deus. A filosofia básica do Tantra é a divinização do desejo – embora de uma maneira diferente – não por aderir aos desejos, mas por superá-los, por divinizá-los.
Desejos criam problemas. Você remove esse desejo e o canaliza para algo divino, algo piedoso, algo enobrecedor e algo que o elevará. Isso é Tantra. Mas o que as pessoas estão fazendo agora? Eles estão se apegando ao desejo e descendo ao nível do desejo, ao nível do corpo. Isso não é Tantra. Kali tem sido uma das principais divindades nas práticas tântricas. Kali também tem sido a divindade dos bandidos. Há muita literatura sobre bandidos na Índia, particularmente do período colonial ou britânico. Muitos historiadores britânicos escreveram livros sobre bandidos indianos. Eles eram considerados uma classe diferente de pessoas, principalmente os dacoits, que viviam na Índia e adoravam Kali. Sri Sarada Devi encontrou um grupo de dacoits e os viu adorando Kali.
Kali é vista como a deusa não-bramânica . Ela é a deusa da pessoa comum assim como o Senhor Jagannath de Puri é visto como o deus das massas. Na maioria dos lugares na Índia, particularmente nos estados do sul de Andhra Pradesh, Kerala, Tamil Nadu e Karnataka – qualquer um pode entrar em um templo de Shiva e até mesmo abraçar o Shivalinga. O mesmo não acontece com os outros deuses e deusas. Kali evoluiu como uma deusa para as pessoas comuns, para pessoas que são supostamente de classes mais baixas e foram privadas de entrar em templos. Ainda hoje, em muitas partes da Índia, elas estão privadas do acesso ao culto de deuses e deusas. Para eles, Kali está lá, ela pode ser adorada por qualquer um.
A forma de Kali também foi adaptada em diferentes formas. Em muitas partes da Índia, a forma de Kali não combina bem com a psique da população local. São incapazes de aceitar uma mulher deusa, uma forma feminina divina e nua, então eles a cobriram com um vestido e mudaram seu nome. Assim, encontramos deusas femininas semelhantes a Kali em várias partes da Índia, mas estão bem vestidas e há algumas outras mudanças em um esforço para domesticar o divino feminino!
Sri Ramakrishna e Kali
Kali também pronuncia os fundamentos feministas de sua forma e advento. Que Sri Ramakrishna tenha escolhido Kali como sua principal divindade e que ele tenha escolhido o templo em Dakshineswar como seu local de sadhana nesta Kali Yuga também têm profunda importância e implicações. O templo de Bhavatarini em Dakshineswar foi construído por Rani Rasmani, que era da casta de pescadores, que não podiam adorar a Deusa no templo. Uma mulher da casta dos pescadores trouxe um brâmane da mais alta ordem, a própria encarnação de Deus, como o pujari de seu templo. Esta foi uma das várias ações pelas quais Sri Ramakrishna estabeleceu esta era como a era da adoração da Mãe. Rani Rasmani era uma mulher incrível e uma grande administradora. Ainda hoje em Calcutá existem imensas propriedades que pertencem à Rani Rasmani. Esse é um ótimo testemunho do poder e habilidade de Rani Rasmani.
Embora possa haver várias teorias, suposições e conjecturas sobre por que Sri Ramakrishna escolheu o templo de Dakshineswar Kali para seus sadhanas, obtemos a resposta em uma carta escrita por Swamiji em resposta a uma queixa que foi enviada a ele por um de seus irmãos-discípulos. Quando o aniversário de nascimento de Sri Ramakrishna foi celebrado no jardim do templo de Dakshineswar Kali, muitas pessoas de classes supostamente baixas, muitas mulheres públicas e muitas outras pessoas de caráter ou moral questionáveis compareceram às celebrações. Muitos ‘senhores’ se ofenderam com a presença dessas pessoas e reclamaram com os irmãos-discípulos de Swamiji, que estava na Suíça. A queixa era de que tais pessoas que não são da pequena nobreza não deveriam poder participar das celebrações. Quando Swamiji ouviu esta queixa, ele contestou fortemente através de uma carta dizendo que Sri Ramakrishna não veio para a ‘pequena nobreza’ e que se nenhum membro da ‘pequena nobreza’ quiser comparecer a tais celebrações, que assim seja! Swamiji disse que deixassem mais e mais ladrões, prostitutas e outras pessoas que são denunciadas pela sociedade assistir às celebrações, porque é para elas que Sri Ramakrishna fez seu advento. Swamiji disse que Sri Ramakrishna veio para os oprimidos, os ignorantes e os ímpios e se alguém tiver algum problema com tais pessoas participando das celebrações, que não venham. Nesta carta de Swamiji, encontra-se a resposta de porque Sri Ramakrishna escolheu Dakshineswar para ser a principal sede de suas práticas espirituais.
A grande vantagem de Sri Ramakrishna é que temos documentação histórica de tudo, ao contrário de outras encarnações divinas como Chaitanya Mahaprabhu , sobre os quais não temos tal documentação. Sri Ramakrishna praticou o Tantra, o Vaishnavismo, o Vedanta, o Islã e o Cristianismo e realizou os objetivos finais de todas essas disciplinas. No entanto, ele também praticou todas as disciplinas do Tantra. Ele fez isso para autenticar esse caminho para a Kali Yuga. Ele disse que na Kali Yuga, nossos corpos dependem de comida. Somos dependentes de confortos materiais, somos dependentes de nossos desejos e são nossos desejos que nos impulsionam em nossas vidas diárias. Então, se nós soubermos como controlar os desejos ou canalizá-los, somente então, poderemos ir em direção ao nosso objetivo na vida: a realização de Deus. Sri Ramakrishna nos mostrou um caminho onde podemos realmente canalizar esses desejos, e esse caminho é o Tantra. Existem numerosos estudos em profundidade no Tantra e ainda há muito a ser compreendido. O reconhecimento do desejo humano e sua transformação por várias práticas espirituais, incluindo a adoração de Kali, é o Tantra.
Deificação do Terrível
Kali é a adoração do terrível. Há uma diferença muito significativa entre a psique oriental e a ocidental em relação ao princípio divino. No Ocidente, geralmente, qualquer coisa terrível é considerada profana, diabólica ou ímpia. Geralmente, uma cobra não é considerada sagrada nas tradições da fé ocidental , onde qualquer coisa que tenha uma forma terrível é considerada profana. Geralmente no Ocidente, não encontramos a deificação da morte. Nas tradições judaico- abraâmicas e islâmicas, geralmente a morte significa algo sombrio e diabólico. O culto a Kali tem uma influência sociocultural profunda nas regiões onde esse culto é predominante. Na Índia, o culto a Kali é predominante principalmente no leste da Índia e em partes de Kerala. E nesses lugares, vemos o sistema matriarcal da sociedade: embora na maioria dos outros lugares hoje, o sistema tenha mudado para o patriarcal. A adoração de Kali influenciou a posição das mulheres na sociedade ou também pode ser que a supremacia do feminino tenha provocado uma prevalência do culto a Kali.
O Cumprimento da Adoração à Kali de Sri Ramakrishna
Sri Ramakrishna cumpriu de fato a adoração de Kali, entregando os frutos de todas as suas práticas espirituais a Sri Sarada Devi e estabelecendo sua divindade. Ele também disse a ela que não tinha feito muito em nome do ministério espiritual e que ela teria que fazer muito mais. Isso foi o que aconteceu, Sri Sarada Devi deu sabedoria espiritual para inúmeras pessoas. Os discípulos de Sri Ramakrishna eram apenas um punhado, mas não temos sequer uma estimativa grosseira do número de discípulos de Sri Sarada Devi. Sri Ramakrishna, assim, trouxe uma revolução na história religiosa por colocar sua consorte em uma posição espiritual superior.
Swamiji diz que muitas das práticas abomináveis sob o nome de Tantra no hinduísmo são essencialmente formas corruptas de práticas budistas. Sri Ramakrishna diz que assim como há portas diferentes para uma casa, algumas na frente e outras na parte de trás, similarmente há
diferentes caminhos para Deus, e alguns caminhos, como algumas denominações tântricas, são as entradas de trás para Deus. Ele as chama de entradas de trás porque dão muita importância ao corpo e se envolvem em prazeres corporais sensuais. Existem muitas deusas no budismo, muitas delas muito semelhantes às deusas do hinduísmo; algumas delas, como Vajrayogini, são semelhantes a Kali.
Devotos de Kali como Ramprasad e Kamalakanta tinham um relacionamento íntimo com a Deusa. As músicas que compuseram revelam a proximidade que esses devotos tinham com o ideal escolhido. As letras dessas músicas podem ser consideradas heresia por muitos que são crentes de Deus, mas que são novos no conhecimento da forma de Kali. A devoção e a expressão do devoto transcendem as fronteiras entre o sereno e o obsceno. Descrições gráficas da Deusa e um íntimo intercâmbio através de insinuações, alegações, abuso, discussão e xingamentos de nomes, muitos dos quais se qualificam como gírias grosseiras – tudo isso mostra que mesmo a adoração de Kali desafia todas as normas e questiona aquilo que está estabelecido, abrangendo os marginalizados. A maioria dessas músicas, que são chamadas de ‘Kali Kirtan’, estão programadas para sintonizar o sistema Dhrupad de música clássica hindustani , sistema o qual Swamiji gostava muito, e que permite que cada vogal, nota e batida se transformem em você para levá-lo para o mesmo ethos e fervor que o devoto poderia ter quando a canção foi originalmente cantada. Até Shiva é testado nessas músicas. Este tipo de intimidade é uma coisa difícil de se praticar. Assim, o culto de Kali tem dois aspectos importantes: Um adora o terrível, sabendo que ela é tudo-em-tudo do universo; e ao mesmo tempo tem um relacionamento muito íntimo com ela. Ela é a Mãe do universo, ela é a única Deusa – pode-se saber de tudo isso e ainda assim você pode repreendê-la, chamá-la de louca, bêbada e qualquer outra coisa em que se possa pensar. Pode-se continuar a repreendê-la e também ao marido! Esse é o privilégio que o adorador de Kali tem.
Há certos aspectos pertinentes das práticas espirituais de Sri Ramakrishna de que falamos, mas falhamos no entendimento de sua importância e, portanto, não conseguimos imitá-las. Como parte de suas práticas espirituais, Sri Ramakrishna uma vez foi ao banheiro de uma pessoa e limpou o banheiro com seu próprio cabelo. Precisamos lembrar que o vaso sanitário em questão não era como os sanitários modernos, limpos e reluzentes, onde se pode até dormir; onde não há sujeira visível em nenhum lugar. Os banheiros durante esses dias, particularmente na Índia, eram lugares tremendamente imundos, com grandes recipientes para conter a sujeira que era esvaziada periodicamente. Não se podia ir a nenhum lugar próximo a esses lugares sem sentir um terrível fedor. Até recentemente, esses banheiros estavam em uso em algumas partes da Índia rural. Sri Ramakrishna foi a tal lugar e limpou-o com o seu próprio cabelo. Muitas pessoas não podem nem mesmo limpar os ralos entupidos de suas cozinhas e, portanto, muitos de nós não conseguem entender o que Sri Ramakrishna fez. Quando lemos sobre esse incidente na vida de Sri Ramakrishna, não entendemos seu significado e impacto. Era preciso transcender a repugnância para fazer o que Sri Ramakrishna fazia. Para a maioria das pessoas, um lagarto é o limiar de sua tolerância à aversão. Sri Ramakrishna não apenas transcendeu a aversão; ele a aceitou e limpou o banheiro.
A adoração à Kali e o Tantra nos exige que aceitemos o abominável. Sri Ramakrishna teve que tocar com seus lábios carne humana podre, enquanto fazia práticas tântricas. Ele tinha que fazer muitas coisas para remover a repulsa. Isso é essencial para a prática tântrica porque não há dicotomia na divindade e não há nada que não seja divino. O único princípio divino existe tanto no prazer quanto na sujeira. Não tem limites no espaço, no tempo ou na causalidade. Mesmo o sujo e abominável é uma leitura errada de Brahman. Em sua essência, não é diferente de Brahman. Deste ponto de vista, a adoração de Kali é a adoração do único princípio divino imanente.
Mas como adoramos Kali? Oferecemos-lhe incenso, a adornamos com flores, a decoramos para satisfazer o nosso coração e levá-la às nossas normas de beleza e feminilidade. Essa não é a maneira de adorar Kali. Kali é a personificação do terrível. Para adorá-la, devemos adorar o terrível. Ela deveria ser adorada na floresta. Ela deveria ser adorada nos campos de cremação. Ela deveria ser adorada nos mortuários. Ela deveria ser adorada nos hospitais. Estes são os lugares da adoração de Kali; ela é a personificação da destruição e da morte. No entanto, não nos lembramos disso quando a adoramos. A maioria de nós tem muito medo da morte. Mesmo quando alguém se refere à morte iminente no falecimento, em uma conversa, as pessoas em torno ficam perturbadas e começam a denunciar qualquer referência à morte. Somos inundados de declarações sobre esse universo transicional e de como a morte é a única coisa certa em nossas vidas. No entanto, raramente agimos de acordo. Yudhishthira disse que a maior maravilha neste mundo era que enquanto todos vêem as pessoas morrendo ao redor deles todos os dias, eles estão bastante convencidos de suas vidas como se fossem imunes à morte. O próprio conceito, conversa ou até mesmo uma leve menção à morte nos assusta. Com essa mentalidade, podemos adorar a morte, podemos celebrar a morte?
A morte pode ser vista como uma forma de Kali. A morte é percebida de maneira diferente por diferentes sociedades. Algumas seções das chamadas classes inferiores da sociedade fazem uma grande celebração da morte de uma pessoa e têm danças, músicas, tambores e bebidas quando alguém morre. Eles têm uma enorme procissão de pessoas dançando e bebendo ao redor dos mortos. Esta é a celebração da morte. Algumas seitas monásticas budistas praticam meditação sobre a cremação de uma pessoa. Eles meditam em vários estágios da destruição do cadáver – sua queima, a rachadura do crânio, e assim por diante. Dessa maneira, fortalecem seu conhecimento da impermanência do corpo. No tantra, há uma prática de fazer práticas espirituais sentadas em um cadáver, shava . É chamado shava- sadhana. Isso é praticado por alguns tântricos, até hoje.
Beleza no Terrível
Tantra é sobre ver a bondade ou a divindade no terrível. Uma pessoa fica mal por causa de circunstâncias particulares. Swamiji diz que todo mundo é potencialmente divino. Boas ou más qualidades são apenas coberturas da verdadeira natureza da pessoa. Não se torna bom simplesmente porque se tem dinheiro para comprar um bom vestido. Pode-se ter o karma para nascer em uma família respeitada e obter uma boa educação. Entretanto, essa pessoa se tornará boa apenas por suas ações. Swamiji diz que se alguém continuar fazendo coisas boas, somente coisas boas virão para essa pessoa. Se uma pessoa continuar fazendo coisas ruins, somente coisas ruins atrairão essa pessoa. Uma pessoa se torna boa e melhor, e a outra pessoa fica ruim e depois pior.
A adoração de Kali é a adoração do terrível. Por que essa adoração deve ser feita somente no templo? A verdadeira adoração da morte e do terrível deve ser a adoração do imanente. Se alguém vê um bêbado, um ladino ou um criminoso, ninguém deve adorá-los? Eles são diferentes do princípio divino consciente imanente? Mas nós não os adoramos. Em vez disso, nós os odiamos. As pessoas esperam que os outros se vistam de acordo com suas preferências. Nós estruturamos noções de beleza e gentileza. Na maior parte do mundo, para ser considerado bonito, é preciso ter uma aparência clara. Essa insistência na branquitude é completamente injusta. A adoração de Kali deve nos permitir ver a beleza em todos os lugares, mesmo em coisas convencionalmente consideradas ferozes, feias e repulsivas.
Costumamos associar idéias convencionais de feiúra ao mal. Se uma pessoa não é bonita, as pessoas questionam o caráter dessa pessoa. Se uma pessoa não está bem vestida, as pessoas não se sentem à vontade para se aproximar dessa pessoa. O externo é sempre considerado uma chave vital para o interno. Mas isso é verdade? Mesmo que haja alguma verdade nessa crença, um exterior desagradável não pode ser diferente de Deus. Além disso, a lógica ou evidência empírica não suporta a crença de que um exterior agradável aponta para um interior íntegro. E se a vestimenta de uma pessoa, particularmente a de uma mulher, não se conforma com as normas convencionais, essa mulher é ridicularizada e seu caráter é questionado. Essa é a maquiagem mental da maioria das pessoas. E é aí que a forma e a adoração de Kali se tornam ainda mais significativas. A forma de Kali rouba o corpo físico de sua sensualidade e estabelece sua divindade. É por isso que Kali está nua. Ela diminui a importância da roupa. O corpo físico feminino, comumente associado à armadilha de maya, foi roubado de seu poder sedutor pela forma de Kali. Transforma a mulher no corpo feminino em mãe. Ver a Mãe Divina em cada mulher é uma das práticas espirituais importantes para um homem. Assim, não importa se a pessoa está vestida ou não. O adorador de Kali não vê o sensual no feminino, mas vê apenas o divino em todas as formas.
O culto de Kali é feito em imagens que são feitas de acordo com os padrões convencionais de beleza com aparência “perfeita”. Em vez disso, Kali deveria ser adorada na mais “chocante” das imagens: gorda, feia e desproporcional. Porque é a adoração do terrível. Além disso, há muitos estereótipos de gênero e misoginia em torno dos locais do culto anual de Kali, onde os puja pandals prosperam em práticas consumistas anti-mulheres. A forma feminina é insultada, ridicularizada e transformada em fonte de consumismo. E nós convenientemente ignoramos o aspecto de Kali que está de pé sobre Shiva – a supremacia do feminino sobre o masculino. Lugares na Índia associados ao culto a Kali são principalmente lugares onde as mulheres são altamente respeitadas na sociedade. A adoração de Kali não é generalizada. Esta forma de Kali é a forma que precisamos adorar. Ela é o epítome do empoderamento das mulheres e é por isso que Sri Ramakrishna ofereceu os frutos de suas austeridades espirituais aos pés de Sri Sarada Devi no dia de Phalaharini Kali puja. Ele queria que esse empoderamento das mulheres fosse implementado na sociedade atual com Sri Sarada Devi no centro. É em seu nome que a Missão Sarada Math e a Ramakrishna Sarada foram fundadas, indiscutivelmente a primeira organização monástica do mundo a ser completamente detida, controlada e administrada por mulheres, por sannyasinis .
Geralmente, em todo o mundo, e através das principais religiões do mundo, os monásticos são considerados a seção mais alta da sociedade – até mesmo o rei tem que se curvar diante de um monge. Normalmente, é a mulher que administra uma casa, dá à luz filhos e lhes dá uma boa educação. Ninguém mais pode fazer isso. É por isso que a Mãe Divina controla o universo e é por isso que ela está de pé sobre o peito de Shiva. E sempre que pensamos em Kali, devemos pensar no terrível, devemos pensar em todas essas pessoas que foram privadas de circunstâncias adequadas, comida, roupas, abrigo, educação e um modo de vida decente. A adoração dessas pessoas será a verdadeira adoração de Kali.
Sri Ramakrishna trouxe o conceito maravilhoso de servir a Deus nos seres vivos com o conhecimento de que eles são Deus. Isso pode também significar que se deve servir aos seres vivos, sabendo que são Kali. Então, não se fugiria do terrível e do desagradável e se serviria aos que sofrem. Eu reconto um incidente que aconteceu em um hospital da Missão Ramakrishna localizado em um local de peregrinação. As pessoas têm muita fé neste hospital e sempre que alguém vê um morador de rua sofrendo nas estradas, o trazem e o deixam nas mãos do hospital. Algumas vezes, nem esperam a chegada das autoridades do hospital, simplesmente colocam o paciente em frente ao hospital e vão embora. Essa é a fé das pessoas neste hospital. De tal maneira, um dia alguém trouxe um monge que estava deitado à beira da estrada para este hospital. Este monge tinha muitas doenças, mas a principal delas era que ele tinha um buraco na cabeça e o buraco tinha ficado consideravelmente profundo. O monge não recebia nenhum atendimento médico há dias e o buraco em sua cabeça estava infestado de vermes. Ele tinha ficado deitado na sujeira por um longo tempo e todo o seu corpo e roupas estavam emitindo um cheiro insuportável e era difícil se aproximar cerca de vinte pés dessa pessoa. Quando este monge foi levado a este hospital da Missão Ramakrishna, uma enfermeira levou-o para um gramado aberto e o fez deitar em um grande banco de madeira. A enfermeira, sentada em uma cadeira, pegou instrumentos cirúrgicos e começou a remover as larvas, uma a uma, aparentemente alheia ao terrível fedor. Ela fez isso por muitas horas até que todas as larvas foram retiradas, e então cobriu a ferida, levou o paciente para dentro do hospital, deu- lhe um longo e completo banho, colocou novas roupas nele e o levou para a cama do hospital, tão fresco quanto novo. Essa é a verdadeira adoração do terrível. Se alguém pode fazer tal serviço, adora-se a Kali. O culto tradicional de Kali, onde alguém distribui prasad após o puja, é muito mais fácil de fazer. Precisamos de um tipo diferente de adoração de Kali hoje; uma adoração que pode nos fazer assimilar o fato de que não há nada de terrível neste mundo, tudo é divino.
Precisamos tanto do que é abominável quanto do prazeroso. Freqüentemente nos desanimamos com o terrível ou abominável. Mas assim como se assiste a filmes humorísticos e a filmes de terror, precisamos aceitar o terrível com o prazer. Isso nos faz fortes. Nesse contexto, precisamos lembrar a declaração da irmã Nivedita dizendo que o que precisamos hoje é de ‘Kali e chutney’. Aparentemente, é um comentário cômico e inofensivo, mas na reflexão, sente-se algum significado profundo aqui.
Kali é a personificação de tudo o que é abominável e terrível e chutney é um condimento picante. Com um pouco de chutney de deificação adequada e canalização podemos engolir e assimilar a Kali do intragável.
As escrituras do Sanatana Dharma estão repletas de referências à Mãe Divina, adoração do feminino como divino. Mas na Índia, vemos atrocidades indizíveis sendo perpetradas contra mulheres. Uma mulher que é “bonita” no sentido convencional do termo tem uma vida difícil de viver e a vida de uma mulher que não é tão “bonita” também é cheia de dor. É irônico que as pessoas queiram que todas as mulheres sejam “bonitas”, mas a vida de uma mulher se torna miserável se ela for “bonita”. Por isso, nossas idéias de beleza e graça precisam ser completamente mudadas. Tudo neste universo é belo e divino. Mesmo o próprio conceito de obscenidade foi projetado a partir da perspectiva masculina. É o “olhar masculino” que decide o que é obsceno. Apenas o retrato “inapropriado” da forma feminina é considerado obsceno, mas não um mesmo retrato da forma masculina. Aquilo que perturba a psique masculina é obsceno e aquilo que perturba as sensibilidades femininas é ignorado. A menos que transcendamos tais construções estreitas, não estaremos prontos para adorar a Mãe Kali.
Muita clamor e grito é levantado a respeito das roupas que uma mulher pode usar. Se somos realmente adoradores da Mãe Divina, se somos realmente adoradores de Kali, não importa se uma forma feminina é vestida ou despida. Porque um devoto de Kali só veria Kali em todas as formas, masculina ou feminina. É o cúmulo da hipocrisia adorar o feminino divino, por um lado, e denegrir e oprimir as mulheres, por outro. Não há roupas ‘apropriadas’ ou ‘impróprias’; o único tecido que cria toda a miséria é o tecido da ignorância e da ilusão.
Como adoradores de Kali, devemos adorar o terrível. Nós devemos aceitar o terrível. Nós devemos abraçar o terrível. Devemos adorar a forma feminina e a pessoa do sexo feminino. Não seria necessário restringir nossa adoração apenas com o feminino divino em uma imagem, mas devemos cuidar também da pessoa feminina. Nós devemos adorar mulheres. Swamiji costumava dizer repetidamente que um país onde as mulheres não são mantidas em alta consideração é condenado. Finalmente, não devemos apenas adorar mulheres, mas aceitar sua superioridade sobre os homens. Na sociedade, homens e mulheres devem andar como as duas rodas de uma carruagem; complementando um ao outro. No entanto, isso não significa que homens e mulheres sejam iguais; eles não são. As mulheres ocupam uma posição muito maior e desempenham uma função importante do que os homens. É por isso que Kali está no peito de Shiva. Nenhum homem deu à luz uma criança; isso é biologicamente impossível. A natureza confiou a uma mulher muito mais responsabilidade que um homem. Se adorarmos e aceitarmos mulheres como superiores entre iguais, e se abraçarmos os terríveis, estaremos adorando à Kali.
Phalaharini Kali remove todo o nosso karma, mas temos que estar alerta e vigilante para não aumentar seu trabalho. Temos que estar conscientes de não adicionar as boas e más tendências que carregamos. É fácil desistir do mal, mas é muito difícil desistir do bem. Sri Ramakrishna fez isso: ele desistiu de tudo que era bom e tudo o que era ruim. Ele apenas manteve a verdade com ele. Ele segurou o substrato e desistiu de tudo que é projetado nele. Então, como adoradores de Kali, precisamos desistir dos bons e maus resultados de nossas ações. A adoração de Phalaharini Kali significa concentrar-se em aceitar o terrível, o feio, a morte e a destruição. Toda vez que vemos Kali, devemos nos lembrar dessas coisas e não tentar mudar a deusa feminina Kali em uma deusa feminina convencional em conformidade com o senso convencional de beleza e graça.
Editorial da Revista Prabuddha Bharata – Janeiro 2016
Original: https://issuu.com/subhabarta/docs/012016/282
Tradução: Ana Poubel