Duḥkha: Compreendendo o Sofrimento na Perspectiva do Yoga – Parte 1

(Baseado numa aula de Ana Poubel em 2023)

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Falar de sofrimento não é fácil. Em especial em um espaço-tempo em que impera uma cultura de busca de satisfação imediata, onde o olhar sobre o sofrimento (bate na madeira!) é suprimido, ignorado ou silenciado — até que se imponha com força. Mas, e se houvesse uma maneira de compreendê-lo de tal modo que ele deixasse de ser um inimigo imprevisível?

Este foi o ponto de partida da conversa que tive com a turma do curso ‘Filosofia da Prática’ a convite da Patrícia Britto, professora de Yoga no Rio Grande do Norte, e a partir da qual ofereço alguns apontamentos aqui neste artigo.

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Começando a falar sobre o sofrimento humano com uma boa notícia

Nós aqui desse site, e imagino que parte de vocês que o lêem, vimos estudando Yoga a partir de uma abordagem que foi preservada por Tirumalai Krishnamacharya e bastante difundida por um de seus alunos, o TKV Desikachar. No instituto criado por Desikachar, em Chennai, na Índia, na criação do emblema do instituto, escolheu-se como lema um dos aforismos dos Yoga Sūtras de Patan͂jali  – heyaṃ duḥkham-anāgatam – que fica no sutra 16 do segundo capítulo, e diz: “O sofrimento que ainda não chegou, pode ser evitado”.

E é a partir desse ponto que eu queria começar esse tema, pois se a gente for parar pra pensar, a gente pode interpretar que é dessa ideia que surgem praticamente todos os sistemas de busca de conhecimento que a humanidade vem desenvolvendo. Quando se constrói uma casa confortável pra morar, a gente pode dizer que se está evitando o desconforto de viver num local ruim, sob sol escaldante, sob chuva ou passando frio. Quando se faz exames de check-up regulares, estamos evitando o problema que pode surgir de uma doença já desenvolvida e em plena ação no nosso organismo. Quando se desenvolve tecnologias avançadas de metereologia, e se pode prever tsunamis, por exemplo, estamos gerando a chance de termos tempo de evacuar a área afetada, e ter menos perdas de vidas.

Então, quando Patañjali diz que “O sofrimento que ainda não chegou, pode(deve) ser evitado”, ele está nos apontando uma razão pela qual o sistema de Yoga existe, pra quê ele serve. Então, eu queria olhar pra isso um pouquinho com vocês.

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Para quê o Yoga existe?

O Yoga se desenvolve deste os tempos védicos, e no período clássico entra no hall das 6 escolas classificadas sob o guarda-chuva de Darśana. Darśana quer dizer visão, ou ponto de vista; é uma maneira de olhar para o mundo e para a nossa experiência nele. Ou seja, é um paradigma, um modelo ou um esquema de referência. Quer dizer que os Darśanas, assim como outras escolas que se propõe a entender a nossa experiência e o que dá suporte a ela, buscam um esquema pelo qual podemos olhar e analisar o que buscamos conhecer. É importante ter clareza de para quê buscou-se desenvolver todas essas hipóteses, teorias, esquemas, metodologias e técnicas. Existe um marco comum a todos esses paradigmas, que é o reconhecimento da existência de Duḥkha, que comumente traduzimos por sofrimento.

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O que é Duḥkha?

Vamos começar por entender a palavra Duḥkha, e ao longo desse texto vou tentando alcançar um conceito mais geral sobre este tema.

A palavra Duḥkha nasce das raízes duṣ, que quer dizer difícil, ruim, perverso, inferior; e kha, que pode significar eixo, buraco, cavidade, oco, caverna. Seus significados giram em torno dos seguintes termos na nossa língua: sofrimento, insatisfação, dor, angústia, inquietação, tristeza, problema, dificuldade.

Então, retornando ao apontamento no final do último tópico, é do reconhecimento da existência de Duḥkha (dessa insatisfação, dor, inquietação, tristeza, problema, dificuldade) que surge o impulso, o desejo, de sair dessa condição. É uma constatação bastante óbvia. Se a gente transferir pra observação da nossa própria experiência cotidiana, se algo nos causa desconforto, e conseguimos perceber esse desconforto, surge um desejo de sair desse desconforto. E esse é o modelo reconhecido, através da observação, pelos sábios da antiguidade e utilizado pra dar base ao sistema do Yoga, bem como diversos outros sistemas de pensamento, como as quatro nobres verdades do Budismo, por exemplo.

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Modelo de reconhecimento da questão

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O esquema desenvolvido pode ser apresentado com apenas 4 itens:

HEYAM —– HETU —– HĀNAM —- UPĀYA

PROBLEMA — CAUSA — SOLUÇÃO — MÉTODO

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HEYAM (problema) – Duḥkha

Parte-se do reconhecimento da existência do sofrimento, e naturalmente da vontade de sair desse estado. É importante a gente lembrar que essa ideia de Duḥkha, que comumente traduzimos como sofrimento, tem um significado amplo, como vimos nos sinônimos anteriormente. Então, eu posso não me reconhecer em sofrimento agudo, mas perceber alguma insatisfação, inquietação, dificuldade, aperto, limitação. Tudo isso entra no espectro do que chamamos, na psicologia do Yoga, de Duḥkha.

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HETU (origem) – Avidyā

Como vivemos constituídos e cercados – até onde sabemos no presente momento – por elementos e fenômenos naturais, e a natureza é regida pela causalidade: todo problema é efeito de uma causa, possui uma origem. Esta é a tão falada Lei do Karma, muitas vezes pouco compreendida ou usada sempre num sentido pejorativo, mas que simplesmente nos diz que todo efeito vem de uma causa. Em outras palavras, nada surge do nada.

(continua na parte 2)

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